quarta-feira, 8 de abril de 2015

As vinhas (e as raízes) da ira: de onde vêm os personagens da HQ

Os protagonistas. disputas e lealdade

Os primeiros passos do projeto Psicopompo, que é de certa maneira uma ode à infância, foram trilhados à sombra de obras literárias como Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár, e Capitães da Areia, de Jorge Amado. Nessas duas histórias de intenções tão diferentes vemos como gangues de meninos pobres lutam por território, descobrem o amor, a ideologia, e, principalmente, aprendem a lidar com a morte. No caso de Psicopompo, a Morte – com maiúscula – é a espinha dorsal da história e isso faz com que a HQ tenha duas linhas narrativas, uma no passado (que gosto de chamar de “imaterial”) e outra no presente (a qual me refiro como “terrena”).

A parte “terrena” de Psicopompo, que lida com as vidas contemporâneas de um grupo de meninos que moram próximos a uma comunidade de baixa renda, é uma mistura carioca das características de ambas as “turmas” presentes nesses romances. De Os Meninos da Rua Paulo, herda as batalhas campais, as noções de honra e dever. De Capitães da Areia vem a “cor local” e o modelo das relações entre os personagens, algo entre a lealdade fraternal e um embrionário senso sociopolítico.

Porém, a referência mais forte, principalmente para as cenas de conflito, vem do cinema. Um plot secundário de Warriors, os Selvagens da Noite (1978), de Walter Hill, já havia inspirado minha primeira HQ, Para Tudo se Acabar na Quarta-Feira (Draco, 2011), que mostrava como as quadrilhas do Rio de Janeiro se uniriam para organizar o crime na cidade. Agora, esse filme que relata as aventuras de um grupo de delinquentes em fuga por uma Nova York noturna com ares de pesadelo ocupada por gangues uniformizadas cujo niilismo é momentaneamente eclipsado por uma possibilidade de utopia – logo abortada – de poder absoluto, serve como base para minha concepção dos conflitos tribais que envolvem os protagonistas de Psicopompo e seus “inimigos”, moradores da comunidade adjacente.  

Consta que Warriors teve como base a saga dos 300 de Esparta, segundo os relatos de Heródoto em sua História. Psicopompo também tem suas bases mitológicas, mas isso é assunto para um próximo post.

A bola como metáfora do mundo.
Como os elementos esportivos estão presentes em Warriors, representando os papéis de armas de combate corpo-a-corpo (bastões de baseball, patins), em Psicopompo é o futebol que assume a responsabilidade dessa metáfora. A quadra/território/terra é o objetivo, a bola representa o prêmio/mundo/Terra.

O protagonista, o menino chamado Miguel, seria o “protetor do mundo” e, como tal, é o goleiro do time de futebol do bairro. É a história dupla de Miguel, nesta vida e em outra, que acompanhamos  nas páginas de Psicopompo. São dele os olhos que enxergam e se apiedam, que observam e convidam o leitor a seguir pelos quadros, desvendando a trama. Porque esse também é um conto de vingança e crimes esquecidos.


O antagonista: ecos de Fagin, personagem de Dickens
O vilão é anônimo. Ainda me refiro a ele como “Homem Horrendo” apenas como elemento identificador, mas na verdade ele é, como o Mal, multifacetado e insidioso. O Homem Horrendo é, em termos comportamentais, calcado em Fagin, o explorador de crianças que é a encarnação de um mal “viscoso”, muitas vezes frágil e até potencialmente simpático, em Oliver Twist, romance de Charles Dickens.

Mas o discurso do Homem Horrendo é miltoniano, pois, quando analisado pelo ponto de vista do personagem, faz sentido. Baseei seu viés no protagonista do conto Pai Contra Mãe, de Machado de Assis, um caçador de escravos que se enxerga como um indivíduo honrado passando por um momento de necessidade.


As várias formas da conflito: do futebol à guerra de gangues
Se a Morte é a coluna lombar de Psicopompo, o Homem Horrendo é o elemento aglutinador, o ponto fulcral que mantém a coerência entre as duas facetas da história, a “imaterial” e a “terrena”. É ele quem move os personagens, quem aciona as engrenagens evolutivas de todos os outros. Suas atitudes são refletidas, e às vezes ampliadas, pelos coadjuvantes e mesmo seus menores gestos são relevantes e tem consequências.

Como as histórias são definidas por seus antagonistas – e, afinal de contas, são eles quem tomam as primeiras atitudes proativas nas tramas – o Homem Horrendo é o responsável não apenas pelo desenvolvimento da HQ, mas também pelo crescimento e pelas escolhas, nem sempre acertadas ou equilibradas, dos protagonistas.












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