segunda-feira, 27 de abril de 2015

Símbolos e inspirações no imaginário do esoterismo ocidental (por Carlos Hollanda)

Miguel, o protetor dos caminho, no lápis de Carlos Hollanda.
Esta semana, o ilustrador de Psicopompo, Carlos Hollanda – um mix de artista gráfico, acadêmico e pesquisador esotérico – assume o blog para discorrer sobre os elementos que mais entende: arte e magia.

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Uma das coisas que me atrai neste projeto é a abertura que temos para trabalharmos as obviedades e as sutilezas. A narrativa traz, de caso pensado, várias alusões ao simbolismo mágico, esotérico e alquímico, mas em grande parte isso surge não diretamente nos diálogos, mas nas imagens, quase como uma segunda narrativa, ou melhor, quase como uma boneca russa ou um garimpo. Você vê e lê, enxerga de imediato algo, mas ao prestar atenção aos detalhes, percebe que há bem mais ali. Esses símbolos são inseridos de modo muito sutil e pode acontecer de eu desenhar algo despretensiosamente e no final acabar havendo uma forma indiscutivelmente associável a representações da alma, de sigillum, os “selos" angélicos usados, por exemplo, por magos como Cornelius Agrippa ou John Dee. Este último, aliás, chegou a produzir um alfabeto angélico, dizia comunicar-se diretamente com tais entidades. 


Cornelio Agrippa, John Dee e o alfabeto angelical
Entre tais entidades trazidas ao imaginário contemporâneo pelas correntes de pensamento ocultista e também pelo Renascimento estão os daimones. O termo para alguns suscita associações incorretas com algo maligno, quando, na verdade, os daimones são intermediários entre o humano e o divino ou entre o humano e qualquer outra forma de mundo invisível, inclusive o dos mortos. Esta é precisamente a função que no imaginário ocidental se atribui aos anjos, enquanto que na mitologia greco-romana temos Hermes (grego) ou Mercúrio (romano) como cumpridor dessa tarefa. Outras figuras mitológicas representam o mesmo papel: Toth-Hermes,a fusão do egípcio Toth com o grego Hermes, em alusão à escrita, que traduz o pensamento, emoções e outras coisas imateriais em formas tangíveis ou, ao menos, visualizáveis. Esse também é um atributo de Odin, o deus nórdico que cria as Runas, após um equivalente à crucificação, quando pendurado na Iggdrasil, a Árvore da Vida. A escrita, nessas mitologias, permite o contato do humano com o divino através das entrelinhas. Você vê o divino ou o metafísico, nos detalhes que não podem ser vistos diretamente, mas sim por uma visão lateral, por um conjunto de correlações e analogias. Jung chamaria isso de Sincronicidade, que ocorre, trocando em miúdos, quando eventos que possuem para o sujeito uma série de significações ocorrem sincronicamente a atitudes e percepções sobre aquilo que se experimentou.

Psicopompo é um dos títulos de Hermes, o “guia de almas” para o invisível mundo dos mortos, mundo este, o Hades, que precisava ser atravessado para conduzir aos Campos Elíseos, o paraíso da mitologia grega, o local dos Bem-Aventurados. Assim, o mundo dos mortos ou melhor, o invisível (uma qualidade do grego Hades), ou melhor ainda, “ver" o invisível por analogias, é a pré-condição para se chegar ao sublime. É preciso brincar com as realidades ao redor, brincar com os eventos simultâneos e com as percepções que temos. É preciso ser um pouco criança, como os personagens de Psicopompo cuja essência do protagonista só é visível para quem tem olhos para ver. Os quadrinhos permitem isso como nenhum outro meio, creio eu.

No meio da narrativa vamos encontrar sinais no cenário, nas roupas, no ambiente, nos olhares. Volta e meia o leitor verá um caracter como aqueles usados pelos integrantes do Led Zeppelin escondidinho ou sendo a própria diagramação. Está longe de ser algo com fundo religioso, mas convida o leitor a refletir sobre a própria condição humana usando códigos de reconhecimento na cultura de massas e noutras experiências à disposição da contemporaneidade. E por que não beber da arte sacra de todos os tempos junto com os noticiários sobre a vida e a desigualdade das grandes cidades? Por que não embutir sutilmente imagens arcanas, que falam a qualquer um e não apenas uma cultura específica? Com isso a comunicação se dá em múltiplos níveis muito além do óbvio.

Símbolos esotéricos utilizados em ilustração de Carlos Hollanda

Não dá pra revelar muito mais por três motivos: o primeiro é que em vários pontos, esse simbolismo tem que ser colocado em comum acordo com o Octavio Aragão, que é o narrador principal. O segundo é que eu preciso sentir em que pontos as sugestões se encaixam estética e narrativamente de modo a contribuir e não poluir com as imagens e a trama. Não é um tratado de esoterismo ou de magia, tem alusões que fazem a ponte entre a figura do "mensageiro" e do protetor e toda uma tradição que veio ganhando novos contornos de tempos em tempos, sobretudo desde a segunda metade do século XIX, com o surgimento do espiritismo por um lado e de diversas organizações iniciáticas que resgatam o simbolismo hermético anterior à Idade Média. O terceiro motivo é mesmo para deixar a surpresa. 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Acordando as cores (por Osmarco Valladão)

Quando fui convidado pelo Octavio Aragão para fazer parte do projeto Psicopompo, ele tinha uma proposta bastante diferente da que tem hoje. Inclusive outro nome. Só para efeito de registro, esta primeira versão gerou estes estudos, combinando o traço de Carlos Hollanda e minhas cores. 


A mudança radical de orientação no projeto também nos liberou para tentar novos ( e arriscados) caminhos. Hollanda voltou ao meio onde se sente mais à vontade, o lápis, e eu comecei a pesquisar a melhor maneira de trabalhar a partir disso. Senti que minha experiência com colorização mais convencional, especialmente para os EUA, aqui se tornava um entrave e não uma vantagem.

Pesquisa e desenvolvimento, oba! 

Apesar de usar meios digitais, minha primeira decisão foi reforçar ao máximo os aspectos manuais ou artesanais do lápis de Hollanda. Poderia fazer manualmente, mas poralguma razão patológica, gosto de falsificações e ilusionismos.
Separei a arte original do Hollanda em duas, uma muito escura e outra muito clara. Na mais escura, mudei o preto para outra cor. 


Sobrepondo as duas, consegui um efeito semelhante ao de uma arte feita com dois lápis de cores diferentes. Colocando este resultado sobre uma imagem de um papel envelhecido, criei a base perfeita para começar a aplicar cores como se estivesse trbalhando com aquarela, mas contando com as possibilidades do meio digital para fazer alterações de saturação e luminosidade. 



Nesta etapa, o digital conta pouco. É aqui que preciso realmente da experiência e do aprendizado para usar as cores para modelar formas, criar ilusão de profundidade, etc.
Mas, isto não é para ficar bonito. É uma ferramenta narrativa. A cor precisa ser pensada como complemento do texto e do traço, nas suas funções de informar e criar a desejada atmosfera emocional.
Eu poderia dizer o quanto estamos acertando se soubesse para onde estamos indo. Entre referências que vão da iconografia religiosa medieval até o cinema contemporâneo, espero descobrir ante de terminar a história. Por enquanto ainda há uma quantidade desconfortável de intuição e incertezas nisso. Não é minha maneira habitual de trabalhar, que por causa de minha formação como designer costuma ser muito mais planejada. Está sendo uma aventura. 
Rio de Janeiro, 22 de abril de 2015

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Cenários e acenos: a cidade como personagem

A cidade como coadujante em um sketch de Carlos Hollanda
Além dos personagens, Psicopompo é sobre a evolução e as transformações de um bairro. São os conflitos por territórios que norteiam as ações dos grupos de crianças (e também dos poucos adultos) em cena. E por isso, mesmo que não mencionada diretamente e de manter um viés universalista, a história se passa no Rio de Janeiro. Mas, cá entre nós, qual das minhas histórias não cita o Rio?

Desde meu primeiro conto publicado, Eu matei Paolo Rossi (Outras Copas, Outros Mundos, 1998), onde o Rio divide o palco com Barcelona, que os morros, as praias e a área urbana carioca servem como pano de fundo – ou elemento ativo, como no caso de O dia em que Vesúvia descobriu o amor (Cidades Indizíveis, 2010)– para meus devaneios e tentativas literárias. Porque não me vejo como parte de outro lugar e acredito que devo algo ao local em que nasci.

Por isso, em diversas cenas de Psicopompo temos o contraste verticalizante dos morros do Rio como uma metáfora meio óbvia para os conflitos sociais que desde sempre sacudiram a cidade. Personagens caem, almejam o céu, avistam a orla, muitas vezes “pairam” sobre cenários em alturas impossíveis. Tudo para exagerar o senso de urgência, de “desnível”, que o Rio sempre me passou. Afinal, uma cidade entre o horizontal e o vertical, praias e morros, pode ser encarada como a materialização do senso de instabilidade. Nada é tranquilo no Rio, tudo é sempre um pouco desequilibrado.

Contracapa do CD Musical Guide From Stellium
Esse contraste já estava presente em meus projetos desde os anos 90, quando produzi, em parceria com Gilberto Zavarezzi, uma capa para o disco Musical Guide From Stellium, da banda Dorsal Atlântica. A contracapa mostra o pão de Açúcar como se fosse visto através das ruínas de um templo, em um morro inexistente. 

A mesma vista impossível, aparece, de certa maneira, em um dos quadros de Psicopompo (o mesmo mostrado no início deste post). É uma homenagem ao Rio de Janeiro, mas também é um jeito nada sutil de inserir a urbe, senão como protagonista da HQ, talvez como uma presença mais direta. Porque cidades também tem alma.





quarta-feira, 8 de abril de 2015

As vinhas (e as raízes) da ira: de onde vêm os personagens da HQ

Os protagonistas. disputas e lealdade

Os primeiros passos do projeto Psicopompo, que é de certa maneira uma ode à infância, foram trilhados à sombra de obras literárias como Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár, e Capitães da Areia, de Jorge Amado. Nessas duas histórias de intenções tão diferentes vemos como gangues de meninos pobres lutam por território, descobrem o amor, a ideologia, e, principalmente, aprendem a lidar com a morte. No caso de Psicopompo, a Morte – com maiúscula – é a espinha dorsal da história e isso faz com que a HQ tenha duas linhas narrativas, uma no passado (que gosto de chamar de “imaterial”) e outra no presente (a qual me refiro como “terrena”).

A parte “terrena” de Psicopompo, que lida com as vidas contemporâneas de um grupo de meninos que moram próximos a uma comunidade de baixa renda, é uma mistura carioca das características de ambas as “turmas” presentes nesses romances. De Os Meninos da Rua Paulo, herda as batalhas campais, as noções de honra e dever. De Capitães da Areia vem a “cor local” e o modelo das relações entre os personagens, algo entre a lealdade fraternal e um embrionário senso sociopolítico.

Porém, a referência mais forte, principalmente para as cenas de conflito, vem do cinema. Um plot secundário de Warriors, os Selvagens da Noite (1978), de Walter Hill, já havia inspirado minha primeira HQ, Para Tudo se Acabar na Quarta-Feira (Draco, 2011), que mostrava como as quadrilhas do Rio de Janeiro se uniriam para organizar o crime na cidade. Agora, esse filme que relata as aventuras de um grupo de delinquentes em fuga por uma Nova York noturna com ares de pesadelo ocupada por gangues uniformizadas cujo niilismo é momentaneamente eclipsado por uma possibilidade de utopia – logo abortada – de poder absoluto, serve como base para minha concepção dos conflitos tribais que envolvem os protagonistas de Psicopompo e seus “inimigos”, moradores da comunidade adjacente.  

Consta que Warriors teve como base a saga dos 300 de Esparta, segundo os relatos de Heródoto em sua História. Psicopompo também tem suas bases mitológicas, mas isso é assunto para um próximo post.

A bola como metáfora do mundo.
Como os elementos esportivos estão presentes em Warriors, representando os papéis de armas de combate corpo-a-corpo (bastões de baseball, patins), em Psicopompo é o futebol que assume a responsabilidade dessa metáfora. A quadra/território/terra é o objetivo, a bola representa o prêmio/mundo/Terra.

O protagonista, o menino chamado Miguel, seria o “protetor do mundo” e, como tal, é o goleiro do time de futebol do bairro. É a história dupla de Miguel, nesta vida e em outra, que acompanhamos  nas páginas de Psicopompo. São dele os olhos que enxergam e se apiedam, que observam e convidam o leitor a seguir pelos quadros, desvendando a trama. Porque esse também é um conto de vingança e crimes esquecidos.


O antagonista: ecos de Fagin, personagem de Dickens
O vilão é anônimo. Ainda me refiro a ele como “Homem Horrendo” apenas como elemento identificador, mas na verdade ele é, como o Mal, multifacetado e insidioso. O Homem Horrendo é, em termos comportamentais, calcado em Fagin, o explorador de crianças que é a encarnação de um mal “viscoso”, muitas vezes frágil e até potencialmente simpático, em Oliver Twist, romance de Charles Dickens.

Mas o discurso do Homem Horrendo é miltoniano, pois, quando analisado pelo ponto de vista do personagem, faz sentido. Baseei seu viés no protagonista do conto Pai Contra Mãe, de Machado de Assis, um caçador de escravos que se enxerga como um indivíduo honrado passando por um momento de necessidade.


As várias formas da conflito: do futebol à guerra de gangues
Se a Morte é a coluna lombar de Psicopompo, o Homem Horrendo é o elemento aglutinador, o ponto fulcral que mantém a coerência entre as duas facetas da história, a “imaterial” e a “terrena”. É ele quem move os personagens, quem aciona as engrenagens evolutivas de todos os outros. Suas atitudes são refletidas, e às vezes ampliadas, pelos coadjuvantes e mesmo seus menores gestos são relevantes e tem consequências.

Como as histórias são definidas por seus antagonistas – e, afinal de contas, são eles quem tomam as primeiras atitudes proativas nas tramas – o Homem Horrendo é o responsável não apenas pelo desenvolvimento da HQ, mas também pelo crescimento e pelas escolhas, nem sempre acertadas ou equilibradas, dos protagonistas.