Miguel, o protetor dos caminho, no lápis de Carlos Hollanda. |
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Uma das coisas que me atrai neste projeto é a abertura que temos para trabalharmos as obviedades e as sutilezas. A narrativa traz, de caso pensado, várias alusões ao simbolismo mágico, esotérico e alquímico, mas em grande parte isso surge não diretamente nos diálogos, mas nas imagens, quase como uma segunda narrativa, ou melhor, quase como uma boneca russa ou um garimpo. Você vê e lê, enxerga de imediato algo, mas ao prestar atenção aos detalhes, percebe que há bem mais ali. Esses símbolos são inseridos de modo muito sutil e pode acontecer de eu desenhar algo despretensiosamente e no final acabar havendo uma forma indiscutivelmente associável a representações da alma, de sigillum, os “selos" angélicos usados, por exemplo, por magos como Cornelius Agrippa ou John Dee. Este último, aliás, chegou a produzir um alfabeto angélico, dizia comunicar-se diretamente com tais entidades.
Cornelio Agrippa, John Dee e o alfabeto angelical |
Psicopompo é um dos títulos de Hermes, o “guia de almas” para o invisível mundo dos mortos, mundo este, o Hades, que precisava ser atravessado para conduzir aos Campos Elíseos, o paraíso da mitologia grega, o local dos Bem-Aventurados. Assim, o mundo dos mortos ou melhor, o invisível (uma qualidade do grego Hades), ou melhor ainda, “ver" o invisível por analogias, é a pré-condição para se chegar ao sublime. É preciso brincar com as realidades ao redor, brincar com os eventos simultâneos e com as percepções que temos. É preciso ser um pouco criança, como os personagens de Psicopompo cuja essência do protagonista só é visível para quem tem olhos para ver. Os quadrinhos permitem isso como nenhum outro meio, creio eu.
No meio da narrativa vamos encontrar sinais no cenário, nas roupas, no ambiente, nos olhares. Volta e meia o leitor verá um caracter como aqueles usados pelos integrantes do Led Zeppelin escondidinho ou sendo a própria diagramação. Está longe de ser algo com fundo religioso, mas convida o leitor a refletir sobre a própria condição humana usando códigos de reconhecimento na cultura de massas e noutras experiências à disposição da contemporaneidade. E por que não beber da arte sacra de todos os tempos junto com os noticiários sobre a vida e a desigualdade das grandes cidades? Por que não embutir sutilmente imagens arcanas, que falam a qualquer um e não apenas uma cultura específica? Com isso a comunicação se dá em múltiplos níveis muito além do óbvio.
Símbolos esotéricos utilizados em ilustração de Carlos Hollanda |
Não dá pra revelar muito mais por três motivos: o primeiro é que em vários pontos, esse simbolismo tem que ser colocado em comum acordo com o Octavio Aragão, que é o narrador principal. O segundo é que eu preciso sentir em que pontos as sugestões se encaixam estética e narrativamente de modo a contribuir e não poluir com as imagens e a trama. Não é um tratado de esoterismo ou de magia, tem alusões que fazem a ponte entre a figura do "mensageiro" e do protetor e toda uma tradição que veio ganhando novos contornos de tempos em tempos, sobretudo desde a segunda metade do século XIX, com o surgimento do espiritismo por um lado e de diversas organizações iniciáticas que resgatam o simbolismo hermético anterior à Idade Média. O terceiro motivo é mesmo para deixar a surpresa.